Carta para a cura
Olá, primavera
Quero mesmo que essa carta faça parte de algum dos livros de coletâneas que eu publicarei no futuro, sou capaz disso, não é? Ontem enquanto olhava o manuscrito perdido do meu primeiro filhinho, eu lembrei de quanto eu gosto do que escrevo e senti vontade de escrever, de novo, para alguém.
Olá, flores. Quer mesmo saber por que o nome dessa carta é carta para a cura?
Eu tenho a alma sensível ao toque desde que me entendo por gente, quem me toca, ou me destrói ou me cura. Eu não consigo lembrar qual foi a última vez que alguém me curou. Não quero ser extrema, mas de fato, o meu coração estava em pedacinhos como se alguém tivesse o colocado em um liquidificador cor de rosa da Cadence, quando você me encontrou. E isso não tem só a ver com o último acontecimento, mas com uma porção deles que vinham sendo acumulados, mês após mês. Sabe quando você tem total certeza que as borboletas fizeram as malas, deram o fora e demorarão para algum dia pensarem em voltar? É tão triste, mas assim estava eu. E quer mesmo saber porque você, bem você, primavera, foi a minha cura? Eu conheço meu coração desde muito tempo, concorda? E sempre soube que, se a atração não fosse instantânea nem adiantaria insistir. Por isso não insisti em você. Eu não sei bem quando tudo começou, talvez no corredor do terceiro andar do bloco 2, você sentado no chão e eu passando para ir ao banheiro, eu queria encontrar seus olhos, mas você não ergueu a cabeça. Ou na conjunção do bloco 2 com o bloco 1, em que passou apressado e de novo não olhou para mim. Primavera, o que aconteceu depois eu não consigo mais explicar, eu quis você pra mim de uma maneira que só de pensar em escrever já fazem as borboletas baterem as asas em minhas entranhas. Eu quis você pra mim quando te vi sentado no hall, com o pé direito apoiado no joelho esquerdo, eu quis você como se naquele momento alguém tivesse me inserido uma memória (como no clipe da música que me mostrou) e tudo lentamente começasse a ter sentido. Eu quis te ver dormir, eu quis ver suas conquistas, eu quis fazer parte da sua vida, eu quis saber suas dores e suas alegrias, eu quis fazer amor olhando nos olhos, eu quis usar um vestido de flores para combinar com você. Sabe quando é outono e de repente já é primavera?
Talvez não leve a sério, mas isso nunca tinha acontecido antes. Tudo tão devagar como se tivesse alguém controlando tudo. Eu sempre coloquei a carroça antes dos bois e desta vez eu estava satisfeita por não estar acontecendo o que aconteceu nas várias vezes. Todas fracassadas. Não foi simples te dar a mão e nem aceitar que você passou o braço por cima dos meus ombros, eu não queria ser tocada e depois destruída e sinto muito, eu ainda não sabia que você seria a cura. E só descobri depois de ver o tempo correr e você ainda estar sentadinho do meu lado respeitando a minha decisão de não nos tocarmos. E eu quero chorar quando escrevo isso e sair da sala em que estou. Você sabe, ou melhor, não sabe, mas eu já te falei como é triste estar num mundo onde as pessoas só querem te tocar e ir embora.
E apesar de nos enfrentarmos tanto e o silêncio fazer morada entre nós, eu não deixo de acreditar que foi você quem me floriu, literalmente. Que me fez ver e acreditar que é amor enquanto é. Que passamos muito tempo tentando explicar alguns sentimentos que não se explica, que sente. E eu sinto, quando está dentro de mim eu sinto que pode tocar minha alma e que naqueles rápidos minutos eu não desejaria mais nada a não ser ficar com você. Mas somos tão jovens, primavera. Temos o mundo entre a gente...